a vida interior dos bloqueios
(não, essa não é uma edição motivacional para seus processos criativos.)
1
bom dia. hoje é domingo, 26 de maio de 2024. amanheceu frio e nublado. a previsão falou de chuva, mas ou ela não veio ou veio pela madrugada e eu não vi ou ainda virá, com o único objetivo de desacelerar a secagem das minhas roupas no varal. o céu está bem cinza, não necessariamente tão escuro a ponto de precisar acender as luzes tão cedo. pro meu aniversário, adquiri para mim mesmo alguns vinis, entre eles o primeiro e o segundo da velvet underground - aquele da banana, com a nico, e o white light/white heat, este gravado com toda a amplificação possível na década de 1960, de dentro de um aquário. amo essa banda, amo esses álbuns. não me importa a qualidade de gravação do segundo, faz parte do charme. e qualquer um que critique a voz da nico não é bem-vindo aqui - sou democrata apenas na vida pública, minha casa e esta newsletter são ditaduras benevolentes, com todo o respeito.
2
essa poderia ser uma edição comemorativa, afinal é meu segundo mês de consistência; nunca em toda a minha longa e obscura história de escrita na internet consegui manter tamanho grau de comprometimento comigo mesmo e, por consequência, com quem me lê. dito isso, quase que essa edição não aconteceu. nada a ver com bloqueios, mal considero essa newsletter algo criativo. quero dizer, é criativo num sentido literal do termo, quem escreve cria algo quer se queira quer não. digo criativo num sentido artístico, estético. essa newsletter é o que parece ser. eu me sento aqui, nos domingos de manhã, olho pela janela pra ver como está a cara do dia, em seguida narro a primeira meia dúzia de coisas que me vêm na cabeça. às vezes leio e corrijo o resultado antes de postar, às vezes nem isso.
3
eu gosto pra caralho de escrever, caso isso não seja óbvio pra você. escrever, hoje em dia, está entre os maiores atos de futilidade humana. ninguém, em sã consciência, deveria escrever pelo dinheiro ou, pior ainda, pela glória. seria o mesmo que sair por aí cavando buracos em busca de petróleo, você não vai achar porra nenhuma. faço porque gosto mesmo e a inutilidade do ato talvez seja o motivo principal desse gosto. mas tem dias, e tenho passado por vários desses dias pelas últimas semanas, eu simplesmente não quero. como amo ler, mas tem dias que não quero. amo cozinhar et cetera, o recado está entendido. é assim com todo mundo. hoje não está diferente, mas essa manutenção de uma rotina, que obriguei a mim mesmo seguir, ajuda a sair da cama, acordar o hamster que gira a rodinha de exercícios dentro da minha cabeça.
4
por isso não se trata de um bloqueio. as ideias estão aí, até em excesso. umas semanas atrás, terminei uma newsletter com ideia para outras três e quase escrevi tudo ao mesmo tempo, e houve o tempo em que eu fazia isso. dias e dias de postagens em sequência seguidos por cinco ou seis meses de silêncio. tinha esgotado o seja lá o que for que se movia dentro de mim, o hamster estava cansado. então acabei pegando gosto por essa geração espontânea dos domingos, em vez de me deixar levar por um surto de motivação.
5
acabei de ler o se um viajante…, do calvino. indico bastante a leitura, pra quem ainda não leu, principalmente pra quem não sabe nada sobre ele. é um desses livros que te puxa pelo braço e te leva à grande fábrica de salsichas da criação literária e te mostra todas as partes desagradáveis do processo. e, de alguma maneira, você sai da fábrica ainda mais fascinado pela coisa, é esquisito assim. e ele previu o uso de inteligências artificiais para produção em massa de livros - é, tem mais essa. e agora estou me dividindo entre a releitura de matadouro cinco, do kurt vonnegut, e a praça do diamante, de mercè rodoreda. esse segundo, foi presente de bernadete, que já me fala desse livro … talvez há uns três anos já, mas nunca me movi para comprar, por ser um desses livros que escorregam da nossa memória. estão sempre ali, na lista, mas nunca entram na fila. então bernadete fez entrar na fila. li o primeiro capítulo agora de manhã e é diferente. tem algo na escrita. primeiro porque é uma história, isso já dá pra perceber. em contraste com calvino e vonnegut, não estou esperando um jogo de espelhos metaliterários nem divagações espaço-temporais envolvendo espécies alienígenas. é uma prosa colorida e melancólica, que parece começar cheia de nostalgia, mas eu sei que a porrada vai vir a qualquer momento.
6
ainda não sei o suficiente de a praça do diamante para elaborar mais sobre o livro, fica pra uma próxima. agora, sobre matadouro cinco, tem algo de mágico nesse livro, de reconfortante, apesar dos horrores que ele descreve. a maneira como vonnegut simplifica, com a linguagem propositalmente limitada e repetitiva que ele usa, conceitos absurdamente complexos, eu nunca vi nada parecido desde então. é realmente único e bota em cheque nossa percepção da realidade. matadouro cinco nos solta no tempo, não é só billy pilgrim que passa pela experiência. falar que um determinado livro pode ser reconfortante para pessoas em luto ou que sobreviveram situações traumáticas ou estão em luto por circunstâncias traumáticas é sempre um perigo, porque cada pessoa lida de um jeito com seus lutos e traumas, mas, para mim, esse é um livro reconfortante. a percepção espaço-temporal dos tralfamadorianos, para os quais o passado, o presente e o futuro são conceitos alienígenas, pois eles vivem todos esses momentos simultaneamente o tempo todo, traz uma certa paz de espírito difícil de descrever, principalmente porque é assim mesmo, tudo indica que é assim que o tempo funciona e a linearidade que nós percebemos não passa disso: percepção, uma limitação do ser humano, então, nós também, todos os dias (o dia em si um conceito humano) nós nascemos e morremos e vivemos cada um dos momentos entre esses dois extremos da percepção simultaneamente, e assim vai ser, porque o sol também, embora nasça e se ponha todos os dias na percepção, explode e se forma simultaneamente nessa eternidade efêmera. nós só não conseguimos perceber as coisas desse jeito. é assim mesmo. eu sugeriria a vocês essa leitura, mas, se vocês forem mesmo ler esse livro, é porque vocês já o leram, só não chegaram no ponto em que isso vai se tornar perceptível aos sentidos de vocês. assim como vocês já leram essa newsletter, que eu já escrevi. é assim mesmo.
7
sabem aquele debate velho e cansado sobre beatles e rolling stones? então, nesse debate eu sou velvet underground. tem um documentário sobre a banda aí passando em algum lugar, podem procurar. é muito bom. foca no lou reed, porque é sempre assim, o “líder” da banda sempre recebe o destaque. mas eu prestei mais atenção no john cale e nas coisas que ele trouxe pra sonoridade da banda. é que eu curto muito aquela onda da música minimalista (ou maximalista, dependendo de pra quem você perguntar), ambiente, as camadas de som, as repetições e por aí vai. gente como john cage, charlemagne palestine, pauline oliveros, la monte young, éliane radigue entre tantos nomes a serem listados para se acumularem nas curvas dos rios das suas memórias. john cale, antes de entrar na banda, foi estudante dessa gente. vendia maconha plantada pelo la monte young e aprendia teoria musical ao mesmo tempo. então estava ouvindo o velvet underground & nico e, numa das faixas, acho que all tomorrow’s parties, tem um piano constante e repetitivo no fundo que me lembrou strumming music, do charlemagne palestine.
8
strumming music é o disco que botou o charlemagne na praça da vanguarda artística de nova york. resumindo porcamente, ele sentou entre dois pianos e tocou acordes e arpejos variados, enquanto pisava no pedal de sustenido, deixando os sons ecoarem até que novas notas aparecessem entre as notas que ele tocava. a primeira vez que ele fez isso, salvo engano, foi numa igreja, em nova york. ele queria imitar o som dos sinos. enfim, isso não tem nada a ver com nada, eu só queria que vocês soubessem. gosto demais desse disco e do fato de isso ter influenciado velvet underground. pena que os egos do lou reed e do john cale eram grandes demais para que os dois convivessem pacificamente em uma banda. é assim mesmo.
meu livro, que você já comprou, só não percebeu isso ainda.
Acho que os yanomamis também tem essa visão de tempo uno, passado, presente e futuro, vivendo no agora.
Bem legal.
Matadouro 5 está na lista para eu ler ainda esse ano. Acho que vou pegar ele em breve.
Um beijo.