Um compilado de zumbidos
tive duas noites de sono bem dormidas, até que um mosquito entrou no apartamento, e outras coisas envolvendo de sono à impotência na prática política
I
Bom dia. Hoje é 23 de junho de 2024. Uma névoa pesada tomou conta de Itajaí, das 6 até 8 da manhã, quando o sol se fez notar e deixou o céu azul, sem uma nuvem sequer exceto para os lados do mar. Clima agradável, um ventinho frio. 22 graus Celsius é a temperatura perfeita, sinto muito por quem discorda. Estou bem preguiçoso hoje. Vontade de voltar pra cama. Segunda comecei uma sequência de noites bem dormidas, sem interrupções, depois de semanas de dificuldade para pegar no sono e, consequentemente, conseguir acordar. Foi tão bom enquanto durou. Aí um mosquito entrou no quarto, um guerrilheiro discreto, que atacava às três da manhã e desaparecia sem deixar rastros. Entrava no quarto, bebia uns pingos do meu sangue, fugia pras sombras de outro cômodo, não sem antes me acordar zumbindo no meu ouvido. Tenho problemas com mosquitos desde criança, simplesmente não consigo dormir sabendo que tem um por perto. Tema pra levar pra psicóloga? Provavelmente. Enfim, ele apareceu no banheiro, na madrugada de sexta pra sábado, depois de atrapalhar meu sono por três dias, quando interrompi seu ciclo de vida. Não foi possível a convivência.
II
A interrupção do sono, apesar dos pesares, me deixou com a lembrança de dois sonhos misteriosos, que sim, vocês querendo ou não, pretendo compartilhar. O primeiro: achei na Wikipédia um artigo sobre um texto redigido por um grego do período romano, comemorando a crucificação de um sujeito que bem poderia ser Jesus Cristo. Nele, o grego falava sobre um tal falso profeta que vinha com umas ideias bizarras de monoteísmo e que fez muito bem de ser crucificado. Por algum motivo, o texto estava datado como de 300 anos antes de Cristo. No outro sonho, entrei numa galeria de lojas, quando se inaugurava uma barraca de discos de vinil. Parei para dar uma olhada, mas os únicos discos disponíveis eram do Kiss, a discografia completa. Expressei decepção. O casal dono da lojinha respondeu que só pelas quatro da tarde pretendiam expor o catálogo completo. Como eram três da tarde, fui embora, não sem antes dar uma olhada na vitrine de uma livraria na qual não entrei por julgar muito cara. O que um grego de 300 a.C. teria a ver com a crucificação de Cristo? Qual é a carga simbólica da banda Kiss? O que isso tudo significa pra mim? Essa foi a pergunta que eu fiz pro meu inconsciente, mas ele se recusa a responder. Não me perguntem o que isso significa pra vocês, exceto que vocês seguem uma newsletter bem esquisita.
Compre meu livro, antes que eu me esqueça.
III
Ler um livro marcante, desses que entram no salão de leituras de uma vida (A Praça do Diamante, minha mais recente), vem com uma consequência. Qual será o próximo livro que vai me afetar dessa maneira? Estou lendo o calhamaço do Perec já faz um tempo, mas é outro tipo de leitura. Tenho os de não-ficção, mas esses também fazem parte de outra categoria. É difícil explicar. Existem livros que te desafiam e te ensinam a ler e como se constrói um livro. Existem livros teóricos, esses ajudam a enxergar o real (e suas versões e variações e simulações), seja por uma perspectiva histórica, científica, política ou filosófica - coisa que a ficção pode bem fazer, só que de um jeito diferente. Existem também leituras que estão mais para um plano de longo prazo sem objetivo específico e cujas consequências se realizarão somente depois de muitos anos. Pra mim, esse é Em Busca do Tempo Perdido, que deve ser o de muita gente, até porque esse é o catatau dos catatais. Estou nas últimas 100 páginas do primeiro volume, faltam só umas 2000 páginas. Até o momento, tem sido um livro que passeia pela corda bamba do genial e da chatice absoluta. Por um lado, o jeito como Proust manipula o tempo e as sutilezas dos pequenos gestos e sensações, de modo que um segundo pode ser convertido em quinze páginas de divagação, me mostram porque esse livro, mesmo passado um século, continua a apaixonar tanta gente. Por outro, se eu tiver que ler mais uma frase sobre a porra do amor de Swann por Odette, eu não respondo por mim. E eu sei que as próximas 60 páginas serão sobre isso e eu não aguento mais. De qualquer forma, tampouco é desse tipo de leitura que eu estou falando. Na verdade, é bem possível que essa seja uma categoria subjetiva, específica para as ficções, de livros que parecem falar comigo e abrir meus olhos para algo que talvez eu já tenha visto antes, mas não o suficiente, e dali em diante sou outro e sempre vou falar dessa leitura e tentar convencer o máximo possível de pessoas a tentar ter a mesma experiência. Nada, exceto esse corno do Swann, impede que Em Busca do Tempo Perdido acabe por se tornar uma dessas, mas só vou descobrir daqui cinco ou dez anos.
IV
Como estou no final dos calhamaços, vou me permitir chegar ao fim deles antes de me dedicar a outra ficção. Mas estou pensando no próximo e acho que vai ser um da Ali Smith. Se vai ser Garota Encontra Garoto ou se vai ser Suíte, ainda não decidi. Talvez pegue os dois e leia as primeiras páginas. Vou deixar que os livros me convençam. Alguém mais faz isso pra decidir uma próxima leitura? Cata uns tantos candidatos, lê umas cinco páginas de cada e vê qual te convence primeiro a ir além? Eu faço com frequência. Provavelmente vai ser a Ali Smith mesmo, por causa de um discurso dela em uma conferência 2013, sobre Estilo vs Conteúdo. Resumo da fala dela (que eu tentaria citar diretamente, se ela não falasse tão rápida e freneticamente e com tanto humor e jogos de palavras): não existe conteúdo desconectado de um estilo, muito menos literatura livre das duas coisas, seja de estilo ou de conteúdo. Não existe antagonismo, apenas um desejo comercial por homogeneização industrial, que nada tem a ver com estilo ou com conteúdo ou com a suposta briga entre esses conceitos. O esforço por “limpar” uma escritura de seu estilo é, em si, um estilo. Eu acrescentaria que estilo é apenas uma parte técnica, o resto é ditado pela narrativa e pelo inconsciente, portanto imprevisível e tende a contrariar planos. Quando nos damos conta, o estilo está ali.
V
Tenho problemas com a palavra conteúdo, tantos que talvez me forcem a tentar um ensaio mais elaborado, em vez desses fragmentos, para poder de fato elaborar a ideia. Tentei com um “posfácio” que a minha editora pediu para o meu livro. A Rizoma sempre pede um texto final que defina a relação do autor com a literatura. O meu virou um manifesto contra o conteúdo. Foi no calor do momento, hoje eu o revisaria. Até porque sou contra a palavra conteúdo como um conceito dominante, definidor de toda e qualquer coisa - o produtor de conteúdo, criar conteúdo, lançar conteúdo. Ninguém faz isso. É uma confusão de termos. É impossível ser contra o conteúdo, porque ele está, é verdade, em todas as coisas, mas é a parte, é o “texto”, aquilo que está explícito na obra. O problema é que quando as pessoas se definem como produtoras ou criadoras de conteúdo, elas transformam o conteúdo na forma, assim o texto, o explícito, se torna o todo. Mas o conteúdo nunca pode ser a forma, a forma é que apresenta o conteúdo; este, por sua vez, é manipulado pelo estilo, e o conjunto da obra gera a possibilidade de subtextos - sem falar de gêneros e modas entre outras miudezas que informam a arte. Grosso modo, é claro, longe de mim vir com discursos objetivos. Do que foi dito até agora, mantenho com firmeza apenas a parte que reduz o conteúdo ao texto - ao que está apresentado explicitamente numa obra. Por exemplo, em Ulisses, o conteúdo é um dia na vida de um irlandês mediano. Em Proust, o conteúdo é: rapaz come uma madeleine e repensa a sua vida e a daqueles ao seu redor. Em A Praça do Diamente, o conteúdo é: uma adolescente se casa com um rapaz maluco, tem filhos com ele, vive miserável até começar a Guerra Civil Espanhola, quando a miséria dela consegue piorar. Um livro não é conteúdo, um filme não é conteúdo, nem mesmo um tiktok é o seu conteúdo. Para mim, se definir como alguém que cria conteúdos é se reduzir e se degradar, embora, se eu lembro bem, o objetivo dessa moda era fazer o contrário.
VI
Essa redefinição da palavra conteúdo é parte dos movimentos de dominação da indústria de massa. Um jeito de enlatar todas as coisas, reduzir tudo ao mesmo padrão. Assim um tiktok, um filme de super-herói, “Cinquenta Tons de Paulo Coelho” (pra citar uma das brincadeiras da Ali Smith, sem contexto - dá pra entender), Proust, Ali Smith, Joyce, todas as obras expostas em todos os museus e ateliês e galerias, todas as peças de teatro que um dia foram e ainda persistem em serem escritas e performadas, toda a manifestação artística e criativa da humanidade, seja ela online ou material, acadêmica ou popular, em vídeo ou newsletter ou blogue ou livro ou filme ou tela, sejam em forma tradicional ou experimental, pode ser reduzida a: conteúdo. Conteúdo para o consumo automático e impensado das multidões, que recebem o conteúdo livre de curadorias humanas, livre de raciocínio, puro algoritmo direto para os seus olhos, indiferenciado dos anúncios escondidos ali no meio. Não precisa nem se mexer. Conteúdo eterno, cada um de nós uma parte da indústria contínua de conteúdos. E eu aqui a brigar com meus moinhos.
VII
Acho que só agora processei as notícias da morte de Maria da Conceição Tavares, professora essencial e figura ilustre do meu panteão particular. Ter ajudado na popularização das entrevistas e aulas dessa economista talvez tenha sido a única coisa que redima a existência do twitter. Tenho baixado no celular o áudio das aulas de Economia Política (a aula é a forma; economia política é o tema; os assuntos tratados durante a aula são o conteúdo; o jeito como ela fala e os comentários que ela faz são o estilo e a ideologia etc.), que ela deu pro doutorado da Unicamp, lá pelos anos 1990, aquelas disponíveis no Youtube e de onde a maioria dos fragmentos frequentemente compartilhados foram coletados. São difíceis para quem não tem nenhuma base no tema, mas que valem a pena estudar um pouco para conseguir entender. Muito do que ela falou na época aconteceu depois, desde a contínua decadência do império dos Estados Unidos, até o retorno do conservadorismo pela ascensão neoliberal (uns tecnocratinhas de merda) e a possibilidade do fim da “pax” (entre as potências - porque a paz em si nunca se manifesta, principalmente quando os alvos são os periféricos) europeia/estadunidense após um ciclo de crises. Mesmo que não seja surpreendente, é estupeficante observar tamanho retrocesso, local e mundial, assim num período aparentemente tão curto de tempo. Vejam bem, estava claro que era essa a rota que seguíamos, desde que foi dada como certa a perspectiva liberal de que não existe alternativa para o capitalismo, mas a complexidade dos movimentos tecnológicos e sociais que nos levaram a onde estamos é algo que parece insolucionável. Qual resposta, nós que estamos atentos e espantados, podemos dar a isso? Estou, sim, me referindo à PL “debatida” nas últimas semanas, sobre a qual a Lari (do Tem, mas acabou) escreveu essa semana num texto que já diz tudo e mais um pouco do que eu poderia tentar dizer sobre isso. Mas também estou falando do que trouxe ela à tona e do complexo labirinto em que nos perdemos. Porque as únicas respostas possíveis, infelizmente, não têm como ser democráticas. Estamos além dessa possibilidade, dominados por instituições e ideologias muito bem enraizadas em um sistema político-econômico parasitário e autodestrutivo, envolvidos em uma cultura ameaçada pelas delícias da distração e do entretenimento (distraídos pela distração por distração…) e uma contracultura ausente e desdentada. Quem de fato tem voz? De que valem esses textos? De que vale ler e pensar e falar?
VIII
É difícil não se deixar tomar por uma sensação de impotência política, em que palavras como “representação”, “resistência”, “revolução”, não tem significado prático. A teoria está aí, temos teoria a dar com o pau, as universidades e as editoras, mundialmente, nunca reproduziram tanta teoria. Quem olha pra alguns títulos lançados recentemente, sem a contextualização da realidade, poderia bem imaginar que estamos mais politicamente informados e conscientes do que nunca. No entanto, o que acontece? O que impede a comunicação entre a teoria e o povo? O que se fez da prática, que parece estar perdida nos escombros do muro de Berlim? Na verdade, tudo isso que eu disse até agora está muito distante do ponto a que retrocedemos. Estamos num ponto em que é necessário debatermos questões de separação entre Estado e Igreja, tais como uns filósofos do século XIX e anteriores, tudo porque um movimento neopentecostal moderno, uma corrupção de ideias protestantes, de base muito mais próxima do comercial que do teológico, se apossou do discurso político e de uma parcela considerável da mídia. Tudo entre eles, para eles, com uma velocidade assustadora.