Essa newsletter não vai resolver nenhum dos seus problemas
- uma continuação da minha treta com a nova definição da palavra conteúdo
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Bom dia. Hoje é 30 de junho de 2024. Uma manhã fria e ensolarada, em Itajaí. Lá pelas 8 horas, estava 9°, aí enrolei até meio-dia para começar a escrever a edição de hoje e a temperatura subiu para os 15°C, o que acho muito agradável. Pensando bem, antes de começar, começar de verdade, vou passar mais um café.
Ontem à noite eu abri uma garrafa de uísque, enquanto eu lia as últimas páginas da porra do amor de Swann. Pode ser que eu tenha bebido uns três copos. Nada tão extravagante, não deu ressaca, só que, quando olhei o relógio, passava das duas da manhã. Isso porque, terminado o casinho do Swann (chato pra caralho, mas ri demais da última frase, me lembrou o artista da fome, do Kafka), peguei os diários da Susan Sontag e senti uma forte conexão com aquele texto, apesar da minha invasão da privacidade alheia, de alguém que escreveu tanto e de quem ainda li muito pouco (só a coleção de ensaios “Vontade Radical). Outro dia elaboro.
Acontece que ler o diário me fez querer escrever algumas coisas no meu próprio diário. E escrever coisas no meu diário fez com que eu me lembrasse da minha psicóloga sugerindo o diário de sonhos do Federico Fellini. Vasculhei os recantos corsários mais insalubres da internet e nada. Existe, óbvio, ela tem uma cópia (edição italiana) e deve ser uma das poucas versões físicas existentes de um livro que escapou das mãos até dos piratas mais enciclopédicos. Enfim, achei um “livro dos sonhos da Oxford” e comecei a ler o prefácio, que me falou da existência de um tal Artemidoro de Éfeso, um grego/turco, do século II, que fez o livro mais antigo de interpretação dos sonhos a sobreviver aos desastres do tempo - não o primeiro de todos, já que o próprio Artemidoro menciona a existência de vários livros de interpretação dos sonhos, alguns legítimos, mas a maioria obra de charlatões ou amadores, ao contrário dele, que, sim, viveu entre farsantes (quem nunca?), mas leva a sério seus estudos e trabalho. Admirei essa sinceridade e o detalhe de que Artemidoro faz questão de começar o livro assim: “Saudações de Artemidoro para Cassius Maximus!” Aparentemente, uma característica não incomum dos textos de não-ficção do século II (precursores dos ensaios à Montaigne e, mais tarde, Susan Sontag), pelo menos se considerarmos outra figura que muito admiro, Luciano de Samósata, que começa seu “Alexandre, o Falso Profeta”, se dirigindo a Celso, como se dissesse: olha, eu não queria escrever esse livro, mas já que você insiste, quem sou eu pra negar um favor a um amigo. É um jeito de forçar urgência à obra. Imaginem só se a Susan começasse o seu ensaio sobre o silêncio na arte do século XX com um: Fala, John Cage, tá numa boa? Eu nem ia falar disso, mas já que você insiste, taí um texto sobre o silêncio (e nem vai ser uma sequência de 15 páginas em branco).
As coisas que me passam na cabeça numa madrugada de sábado …
Compra meu livro. Por favor e obrigado.
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Uma coisa há de ser dita sobre os gregos, desde a antiguidade clássica até a tardia, eles não se deixavam intimidar por coisas bestas como as evidências. Em outro livro, Uma História da Leitura, do Alberto Manguel (juro que essa é a última referência e logo parto pro assunto em questão, vocês vão ver que tudo se conecta), ele fala das teorias sobre a visão, de Empédocles, Epicuro, Aristóteles e Galeno. Cada um tirando ideias do cu, desde raios que saem dos nossos olhos e capturam a essência da imagem, até átomos que entram nos nossos olhos e tomam forma no nosso coração. Eles não tavam nem aí. E num dia desses, me peguei fazendo isso sobre alguma coisa que não lembro o que é. Estava muito entretido com minhas ideias sobre essa coisa misteriosa até ouvir minha consciência bater na porta e dizer: com licença, você sabe que existem, provavelmente, teses científicas, estudos sobre isso que poderiam bem te explicar com alguma segurança ou, pelo menos, uma metodologia, sobre esse assunto. Assim você vai saber e parar com essa invenção de moda. No fim das contas, não fiz nada e esqueci do assunto. A verdade é que tirar conexões lógicas do cu é muito mais divertido e os gregos sabiam viver.
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Uma amiga minha, a Carol, leu a edição anterior dessa newsletter sobre o problema da palavra conteúdo, tratada como forma, o todo de uma criação em particular. Ela trouxe um outro lado, que eu não me preocupei em considerar por estar fora da minha bolha. Ela tem um ateliê e cria e vende artesanatos em macramé (que, caso seja do seu interesse, você pode conhecer). A produção e venda de artesanato na internet é cheia de altos e baixos e acaba se tornando quase uma obrigação de quem faz isso “criar conteúdo” para as diversas redes sociais, para atrair novos clientes, gerar interesse nos produtos existente e nas novidades, enfim, para sobreviver (o mesmo pode ser dito para qualquer profissão autônoma, virar personagem de rede social é quase um segundo ofício - vide escritores que ninguém nunca ouviu falar que te ensinam a escrever um best-seller da Amazon, ex-editores que te ensinam a escrever uma obra que chame a atenção das editoras, psicólogos em formação que distribuem tiktoks desinformando sobre transtornos psiquiátricos mais sérios e reduzem a psicologia a um truque de ilusionista - “você é perfeccionista? talvez sua mãe não te amou direitinho” -, médicos e advogados que ensinam outros médicos e advogados a cobrarem mais caro por seus serviços - é infinito, é redundante, e sempre retornamos ao coach que vende curso ensinando a vender curso).
Tem coisa mais desagradável nesse mundo que a publicidade? Desde sempre, nem estou falando dessa besta mitológica que virou o “conteúdo publicitário” das redes sociais. É uma linguagem própria, cheia de estratégias e manipulações para nos convencer que precisamos de coisas que não precisamos - pra dizer o óbvio.
Então a Carol me mostrou algumas contas que vendem cursos sobre criação de conteúdo e a linguagem que elas usam para atrair clientes. “Identifique a dor do seu cliente e apresente uma solução”, “influencie a percepção sobre você”, “ative o desejo de interação” - cada uma dessas, dicas bastante primárias de publicidade, recicladas para um público de instagram, talvez pouco familiarizado com esse mundo ou simplesmente vulnerável, começando por identificar uma dor. Que dor?
Vou me usar de exemplo, já que tento sem sucesso vender um livro: qual dor meu livro seria capaz de aliviar? Claro, com muito gogó e pouca ética, dá pra inventar dor. O que mais tem na internet é gente vulnerável. A dor que essa pessoa está explorando é a de milhares de pessoas que talvez estejam desempregadas ou enfrentando um momento de queda em seus pequenos negócios, dor que, supostamente, poderia ser resolvida comprando um curso dessa conta.
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Como eu disse, tudo isso é velho. Essa teoria de vender um estilo de vida, um desejo, em vez de um produto, está aí desde que deram a luz à publicidade. Todas as marcas de carro, de fast-food, de cigarro (quando podia), de cerveja, não são mais apenas um produto, elas são símbolos atrelados aos mais diversos significados, bons (quando a publicidade dá certo) e ruins (quando o público acorda ou a marca vira alvo de uma sátira).
Já falei de Veludo Azul, do Lynch, antes. Um dos símbolos usados ao longo do filme é o das marcas de cerveja. Em Veludo Azul, as marcas de cerveja não são publicidade paga, inserções publicitárias forçadas no enredo em troca de um extra no financiamento. Lynch pegou o simbolismo publicitário das marcas e os transformou em características das suas personagens. Nos anos 1980, Heineken era vista como uma cerveja estrangeira, mais cara, que caiu nos gostos da juventude Yuppie - por isso, a marca vira um símbolo para o protagonista, que tem ou gostaria de ter esses traços de personalidade. A Budweiser representa o velho e tradicional Estados Unidos, a cerveja barata da classe trabalhadora - logo, só os personagens mais velhos, de baixa renda, trabalhadores manuais, a consomem. Pabst Blue Ribbon era … fora da curva. Uma cerveja meio obscura, barata, amarga, que parece atrair gente que gosta de sofrer e/ou fazer sofrer - o personagem do Dennis Hopper, um dos maiores psicopatas da história do cinema, é atrelado a essa marca.
Enfim, tá aí, produtos são atrelados aos desejos, a um traço de personalidade ou estilo de vida desejável ao público. Se você quer ser visto como X, você precisa do produto X, para que os outros percebam isso em você.
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É tudo ok, coisa do dia a dia, quando vemos aonde chegamos. Porque uma coisa é um conglomerado multinacional de corporações, com times imensos de publicitários, e milhões em moeda para investir em campanhas internacionais, manipulando o público nesse sentido. É um lugar-comum tão gigantesco, a maioria de nós está acostumado, arriscaria dizer, quase imune a esse efeito. A imunidade não diminuiu o consumismo, muito pelo contrário. Mas entramos numa era bizarra do consumo irônico. Do “eu sei que o McDonalds não passa de uma latrina de colesterol e obesidade mórbida, mas nós vivemos num deserto dominado por um império que respira por aparelhos, dependentes de uma economia baseada em porra nenhuma, eu quero morrer cedo”. Meu problema é quando se espera, ou melhor dizendo, se exige que um ser humano, uma pessoa física, o seu José, a dona Maria, façam essa transformação simbólica com a identidade delas, para que elas tenham o carrinho de pipoca mais badalado do bairro.
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Nos anos 1970, se falava dos riscos potenciais de borrar as linhas que separam o real da simulação. Isso com base em filmes e séries que simulavam uma família ideal (o símbolo do estilo de vida americano, a família tradicional brasileira, o casal hétero com dois filhos e meio e um golden retriever).
Nos anos 1980 e 1990 (e isso eu estava aqui para ver), crianças já não conseguiam diferenciar os desenhos animados das publicidades, tão atreladas estavam uma com a outra. O desenho dos Transformers ou dos Cavaleiros do Zodíaco eram seguidos por seus respectivos comerciais, quase sem transição, e ninguém sabia mais o que era o quê e tudo não passava de um longo intervalo comercial disfarçado.
Hoje estamos num ponto em que você talvez precise postar alguns stories para vender um livro, divulgar uma newsletter ou falar do seu ateliê, no meio das outras informações que você divulgaria apenas pelo aspecto social - fotos de um jantar de família, uma notícia interessante ou um livro que você leu (distinto do que você escreveu e sem intenções comerciais por trás da postagem).
As barreiras não mais existem, estamos aos poucos nos transformando em empresas ou produtos, criadores de publicidade. Isso falando apenas das pessoas que estão vendendo suas próprias criações, deixando de lado o influenciador, que é basicamente um outdoor humano, alguém que é pago para representar informalmente um sem número de marcas, alguém que talvez tenha começado com uma conta pessoal, para postar piadinhas e coisas do cotidiano, alguém que talvez seja acidentalmente carismático ou particularmente atraente, que do nada passou a receber ofertas para fazer uma publicidade aqui e outra ali, até chegar ao ponto em que tudo que essa pessoa faz é uma publicidade. Então o público se acostumou com as pessoas comuns servindo de veículo publicitário para as marcas, o que convenceu dezenas de milhares de outras pessoas comuns a fazerem o mesmo, só que de propósito, a ponto de virar, não só uma profissão, mas a profissão dos sonhos de muita gente.
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Tem gente que se dedica a isso. Eu posso achar que não é tão legal, eu posso achar que é um sintoma de uma doença social bem grave que está se espalhando e pode nos destruir. Eu posso achar várias coisas e fazer conexões lógicas de pouco embasamento, como o grego antigo surtado na ágora que eu gostaria de ser. Pode ser que seja isso mesmo e tudo bem. Mas tenho dificuldade em acreditar que isso não causa uma certa dissociação em quem se dedica a isso de verdade. Eu, por exemplo, posso querer te vender meu livro, mas eu tenho meus limites morais e estéticos. Igual a Carol, ela quer vender seu macramé e ela está disposta a criar vídeos, usando das técnicas de luz, enquadramento entre outras técnicas de filmagem que ela aprendeu quando trabalhou com cinema, mas ela também tem os limites dela sobre o quanto ela está disposta a se tornar o seu produto e ao tipo de linguagem que ela está disposta a usar. Publicitários chamariam de bloqueios que te impedem de alcançar seu potencial. Eu chamo de consciência crítica.
Isso está diretamente relacionado ao problema de significado na palavra conteúdo. Conteúdo, como ele é definido no mundo da publicidade, o tal do UGC (user-generated-content, palavra que não poderia soar mais robótica, como se o inventor do termo nunca tivesse visto um ser humano cara a cara - conteúdo gerado por usuário), é tão vago, tão globalizante, que tudo e todo mundo pode ser um conteúdo. Você é conteúdo em potencial para suprir as necessidades de um terceiro desconhecido. O seu story falando do dia que você teve que levar seu cachorro pro veterinário deixa de ser apenas uma história sobre um dia qualquer (que pode ter sido um alívio, uma tragédia ou uma rotina, de qualquer forma, apenas uma informação pessoal) e passa a ser conteúdo, uma lição, um aprendizado, uma manipulação de imagem, uma simulação da simulação.
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O substack, pelo que posso ver em algumas newsletters por aí e em vários notes (até porque essa porra é puro algoritmo, sem opção por linha cronológica, baseada em sabe Deus o quê), gosta de se acreditar acima disso, mas não está. Aqui existem pessoas muito bem intencionadas, que escrevem suas newsletters com bom gosto e qualidade, inclusive sigo várias e gosto de todas que sigo e gostei de saber da existência das pessoas por trás das newsletters.
Aqui, aparentemente, por ser uma rede de poucos usuários, as pessoas se contentam com os números baixos, ao contrário do instagram em que existe uma expectativa de chegar aos milhões (de seguidores, de curtidas etc.). Isso é bom. Mas a cultura da criação de conteúdo já chegou. As newsletters dispostas a oferecer uma cura para as suas dores já estão entre nós e elas vão te ensinar a conseguir mais seguidores, a potencializar sua criatividade, a desenvolver seu storytelling, tudo com base nas forminhas homogeneizantes da linguagem publiça. O substack só se distingue de qualquer outra rede pelo número de usuários e, portanto, número de pessoas criativas entusiasmadas em alimentar essa porra, por isso até se vê uma diferença na qualidade das criações e é possível que algo “estranho” receba atenção. Não se criou, ainda, uma regra, mas o manual já está em processo de escrita.
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Mas tio Rapha, você pergunta, qual a diferença? Isso aqui que você faz, que chega no meu e-mail todo domingo, não seria conteúdo como qualquer outro? Será que a única diferença não é você não saber ou não querer ganhar dinheiro com isso?
O meu objetivo com isso tudo não é me diferenciar de tudo o mais que se produz, seja aqui ou em qualquer outra rede, não é essa a questão. A única coisa que eu quero é banir o uso da palavra conteúdo enquanto a forma em si, o todo, como essa categoria dominante capaz de absorver todas as outras formas e identidades. Ou pelo menos demonstrar qual o problema em se aceitar como conteúdo. Chame a Desculpa Qualquer Coisa do que quiser, menos de conteúdo.
Não acredito que o que eu escrevo tenha sequer o potencial de mudar a opinião de uma pessoa, que dirá causar uma mudança social de larga escala. Eu posso, no entanto, expor meus desejos ingênuos. Acho que seria saudável voltarmos atrás um pouco, com o senso crítico aguçado de alguém que percebeu uma série de problemas numa construção e gostaria de revisar uma obra.
O que me parece acontecer com a “criação de conteúdo”, quando aceitamos que tudo e todos são apenas conteúdo, é que as linhas divisórias que separam mercadoria, publicidade, indivíduo, empresa, arte, o real, o simulado, o mapa, o território, et cetera, se indiferenciam e o ser humano se dissolve no processo. Mas ninguém vive num vácuo e é difícil sobreviver sem jogar conforme as regras do jogo. Por isso eu não vivo disso aqui e nem quero, acho que seria comprometedor com meus próprios ideais. Se for pra comprometer meus ideais, fico onde estou, trabalhando com algo que me causa desgosto, mas que pelo menos eu não levo a sério. Como, para mim, literatura, arte, educação, linguagem, são coisas sérias, essenciais, prefiro não me comprometer.