Diários, ficções e intimidades
Comprei os diários da Susan Sontag e da Virginia Woolf, tentei começar um diário meu, aí veio na cabeça a privacidade dos mortos ilustres
I
Bom dia. Hoje é 16 de junho de 2024. Uma manhã nublada, úmida, morna, na simpática Itajaí. E assim vai ficar, parece, azulando pra acinzentar de novo, até anoitecer. Dizem as línguas neutras que amanhã vai chover, depois de uns dias menos frios e ensolarados essa semana. Acho que foi porque comprei uma garrafa de vinho, aí o tempo esquentou. Tenho dessas. Compro guarda-chuva, para de chover. Compro vinho pro frio, o tempo esquenta. E vinho tinto em tempo mais quente não me cai bem, sabe? Sou contra colocar na geladeira, também. Pra mim afeta do sabor à textura, mas pode ser coisa da minha cabeça. E vocês tão bem? Eu já tive fases melhores. Também já tive piores. Agora tô meio travado, entendem? Sentindo com força o passar do tempo. Emocionalmente, tô mais contraditório do que meus colegas de empresa reclamando do comunismo do nosso sindicato mais interessado em defender os bens da empresa do que os direitos do trabalhador. É como se eles estivessem atuando num filme de terror, com base num roteiro de comédia. Dias comuns nessa sátira circense que virou o senso ideológico do brasileiro de classe média, intelecto baixo e autoestima nas alturas. Às vezes eu invejo a simplicidade de pensamento e de estilo de vida de alguns dos meus colegas de trabalho. Dura pouco.
II
Falei do meu livro pra colegas de firma, quatro compraram. Um deles, que diz não ler nem gibis, comprou duas cópias, pra dar de presente. Quase dedicando o próximo a ele - ao meu melhor cliente e pior leitor. Duas colegas já me perguntaram se são histórias reais - uma não tem o hábito de ler, a outra lê romances melodramáticos ambientados na Segunda Guerra Mundial (O Barbeiro de Hitler, A Parteira de Auschwitz, O Salva-Vidas de Dunquerque, A Diretora do Colégio de Anne Frank, O Paisagista de Eva Braun - sempre envolvem um profissional aleatório). Minha gata tá caçando alguma coisa invisível dentro da caixa de papelão dela, perdi o fio da meada. Acho que ia falar que tá sendo interessante ouvir os comentários de gente que não é o meu público-alvo, embora eu não saiba quem é o público-alvo nem me importe muito com isso. É estressante também. Como falei antes, quero a admiração inabalável e distanciada de um número razoável de pessoas - que deixem seus comentários por e-mails ou por aqui. Em pessoa, conto a conto, só quem tiver intimidade.
III
Que livro bom é A Praça do Diamante, da Mercé Rodoreda, minha gente. Logo vou interromper a escrita dessa edição, porque marquei de falar do livro com Bernadete, que me deu o livro de presente. Ela não achava que ia se tornar um livro tão marcante pra mim, mas tá aí, aconteceu. E agora eu preciso convencer vocês a lerem esse livro também. Falei dele na edição anterior, mas ainda me faltava metade do livro pra ler e tanta coisa aconteceu naquela história - nada que possa discutir em detalhes, é claro. Eu só não estava esperando aquelas coisas, não daquele jeito. Eu estava, lá pela página 190, tão exausto da vida de Natàlia/Colometa quanto ela mesma. Um romance tão denso, rápido, forte, brutal mesmo, como foi que ele terminou de forma tão satisfatória? … Contente, até, se pode dizer? É possível, A Praça do Diamante consegue. Consegue te enterrar vivo por duzentas páginas, só pra te tirar da cova rasa nos instantes finais pra te perguntar se você tá bem.
IV
Inevitavelmente, está difícil escolher a próxima leitura. Tenho o livro de casa e o do escritório, pro horário de almoço, e esse segundo continua sendo A Vida: Modo de Usar, do nosso amigo Georges Perec. Mas são ondas muito diferentes. A Praça do Diamante é um romance que esconde sua técnica, se disfarça, te engana, te faz esquecer que aquilo é uma obra de arte propositalmente construída para gerar determinados efeitos. A Vida: Modo de Usar é um diagnóstico para o leitor. Se tivesse sido escrito hoje, com certeza, no final viria uma cartilha de neurodivergências para o leitor se autodiagnosticar. É a história de um sujeito chamado Bartlebooth, que um dia decidiu aprender a arte da aquarela, depois saiu em viagem para diversos portos do mundo, para pintar uma aquarela de cada cenário, que ele enviou a um amigo seu especialista em quebra-cabeças, que então fez um quebra-cabeça de cada aquarela e o enviou para que Bartlebooth os resolvesse, porque, quando resolvidos, Bartlebooth os devolveria ao especialista, que removeria a imagem do quadro de madeira e a colaria numa parede do porto onde a aquarela foi pintada, de modo que, com o tempo, o clima et cetera, inevitavelmente a aquarela se apagasse e nada sobrasse de todo esse empenho. Essa e mais centenas de outras histórias envolvendo os habitantes do prédio em que morava Bartlebooth, no instante em que ele morreu e em diversos outros instantes do passado. Tudo isso com base num sistema muito específico de regras que Perec definiu para ele mesmo. Sabe o que falei na edição anterior, da literatura que faz questão de expor suas entranhas? Então, é isso.
V
Na lista de próximas leituras estão, além de alguns romances, como G. H., da Clarice, e Uma Sensação Estranha, do Pamuk (porque eu sonhei com Instambul uns tempos atrás e, como estou planejando uma viagem para o ano que vem, minha psicóloga sugeriu ir pra lá; em vez disso, optei por ler um livro sobre a cidade), e alguns livros de não-ficção, como Tempo, de Guido Tonelli, e De Bizâncio para o Mundo (mesmo motivo do livro do Pamuk), tenho aqui os diários da Susan Sontag e da Virginia Woolf. O da Sontag, tenho o segundo volume, porque o primeiro se tornou uma raridade, vendido a preço de colecionável. O da Woolf, o primeiro volume, no fim das contas, sou um bichinho cronológico. Li as primeiras páginas do diário da Sontag e tenho mesmo algo de fascinante na leitura da intimidade de uma autora tão notória e ao mesmo tempo tão discreta sobre sua vida pessoal. Intelectualmente, e isso todo mundo já diz, ela sabia muito de tudo e vivia segundo seus ideais. Num dia estaria escrevendo um ensaio que viria a influenciar toda a crítica de arte subsequente, noutro revelaria Machado de Assis para a gringa, e num terceiro dia, porque sobrou tempo, ela estaria dirigindo uma peça de Beckett no meio do cerco de Sarajevo à luz das velas e ao som dos tiros e das bombas. É inevitável não achar o máximo ficar sabendo que alguém assim também sofreu de coração partido e dor de cotovelo. Dito isso, gente morta não tem direito à privacidade? Ou será que os mortos têm, exceto que se tornem ilustres e portanto exista curiosidade sobre a intimidade dessa pessoa morta, aí, nesse caso, se a família (caso presente) concordar: não, os mortos não têm direito algum.
VI
Isso não é uma reclamação. Eu não sei como me sinto sobre isso, pra falar a verdade. Em algum momento da pandemia, fiz um curso de escrita de diário (pois é, estranho, mas foi bacana) com o Joca Reiners Terron. Nele falamos sobre diários de vários mortos ilustres que foram expostos ao público, assim como literatura que tem cara de diário (alguns poemas de Ana Cristina Cesar e de William Carlos Williams) e diários escritos visando futura publicação (Ricardo Piglia/Emilio Renzi, Witold Gombrowicz - a quem diga que os diários são as melhores obras de ambos, eu não os li para ser contra ou a favor). De lá pra cá, me tornei um, paradoxos a parte, diarista intermitente. Minha última entrada no diário foi quarta, 12 de junho, mas antes disso a mais recente era de janeiro. A entrada de quarta quase se tornou essa postagem, até porque considero isso aqui um diário de informações publicáveis - e minhas impressões de quarta-feira foram bastante publicáveis. Nos casos de Piglia e Witão, ok, são diários trabalhados na estética e, julgo com base na sabedoria da minha ignorância sobre as obras, não de todo sinceros. Mas e os diários de gente que não esperava por isso? Cesare Pavese, por exemplo, outro exposto pelas editoras e estudado no curso, cuja última entrada é datada de seu último dia de vida, um dia em que ele se encontrava particularmente perturbado por uma desilusão amorosa e tomado pela depressão. Quem somos nós para invadirmos essa intimidade? Os últimos instantes de consciência de alguém pronto para tirar a própria vida. E com qual finalidade vamos atrás disso? Se fossem apenas acadêmicas, existem bibliotecas capazes de guardarem esse material, nenhuma editora precisa ganhar dinheiro com a publicação.
VII
Mas longe de mim vir com julgamentos morais. Tenho tanta curiosidade quanto qualquer outra pessoa, tanto que compraria o do Pavese se estivesse facilmente disponível, assim como quero ler o diário de luto do Barthes (sobre a morte da mãe dele), entre outras intimidades colecionáveis e de interesse literário, artístico, estético e histórico - é, sim, uma curiosidade tão frívola, devemos admitir. Na verdade, o excesso de julgamento moral é parte do problema. Já existem gentes de influência o suficiente por aí tentando expor Susan Sontag como uma elitista, não suficientemente interessada nos movimentos lgbtqia+ (embora eu não ache que a sigla estava presente além do lgb na época em que ela morreu - não que isso importe pra alguém que faça esse julgamento sem ter estado presente nos anos de 1960 em diante como pessoa não-heterossexual - particularmente, nesse contexto, acho justo que ela tivesse receio de se expor ainda mais) e nos interesses do socialismo. Um diário é um prato cheio para essas polêmicas e já está provado que o público leitor mal tem maturidade para separar autores de suas personagens e narrativas fictícias, que dirá do que está escrito num diário, que pode bem incluir pensamentos intrusos, ideias provavelmente aceitáveis para um período mas questionáveis cinquenta anos depois, entre outras coisas que passam na cabeça de muita gente, mas muita gente tem a sorte de não ser publicada nunca, que dirá depois da morte, sem autorização, para lucro de terceiros. É, no mínimo, questionável, e estou me lambuzando nessa lama questionável igual um porcalhão. Dito isso, eu me sinto capaz de detectar e evitar anacronismos morais (com limites, é claro) e separar ficção da realidade. E vá saber, de repente o diário faz o contrário e bota os pingos nos is tão necessários para uns e outros. E vá saber, de repente foram todos autorizados. Eu tava lá? Eu sou da família?
VIII
E falando em ficção, vou além, não é só a publicação de diários que me incomoda; talvez, mais ainda, questione a existência de obras póstumas publicadas mesmo depois de quem as escreveu deixar bem claro que as queria queimadas. Aí a lista é maior ainda e o assunto ainda mais questionável. Por um lado, obedecidas as ordens, nunca teríamos ouvido falar de Kafka, que publicou pouco em vida e cujos manuscritos eram de interesse da Gestapo. Por outro, o quanto da obra de Kafka, uma vez organizada, revisada, editada e, em alguns casos, até finalizada por Max Brod, ainda é Kafka? Isso importa? Alguma obra é inteiramente uma expressão de quem a escreveu? Não, não acredito em autoria, numa figura concreta e “pura” chamada autor, para mim isso é apenas uma segunda ficção. Dito isso, acredito que artistas deveriam ter algum direito de palavra final sobre o que deve e o que não deve ser exposto de sua obra - ao grande público, estou dizendo que não acho que tudo deveria virar produto para o mercado editorial; acredito, contudo, que a literatura precisa ser estudada e manuscritos precisam ser preservados em bibliotecas para consulta pública e acadêmica.
IX
Agora me deem licença que tem um moinho de vento ali me chamando pra briga e eu não vou deixar barato. Gosto de tratar os debates que travo com as vozes da minha cabeça como fossem polêmicas de interesse nacional. No mais, desculpa qualquer coisa (solta a risada enlatada, produção) e não tá mais aqui quem falou.