dessa vez eu falo de talking heads e
o conceito de normalidade, porque estou adiando faz semanas, mas eu gostaria de saber se
vocês já repararam que encadeio o título com o subtítulo com a primeira frase da newsletter? provavelmente é péssimo pra obtenção e retenção de leitores, mas eu acho uma graça e quis começar a edição da semana dando uns tapinhas de congratulação nas minhas próprias costas antes da inevitável autopromoção. porque vocês já sabem…
em coro harmônico:
compra meu livro.
i
semana passada eu mencionei a falta de joni mitchell no spotify. pra me contrariar, ela voltou, o que me obriga a deixar aqui o disco dela, blue, pra vocês ouvirem. eu não sei qual é a desse disco. se prestar atenção, é tão simples. é a joni falando dos péssimos relacionamentos recentes dela, com um certo carinho e nostalgia por cada um deles, falando de viagens, de sentir falta da califórnia enquanto ela passa um tempo em paris. enfim, não era pra mudar a vida de ninguém. mas tem algo na voz dela e na qualidade quase ingênua da sinceridade das letras que torna o disco excepcional. vocês que não me deixem mentir sozinho e escutem:
ii
mas esse não é o tema, eu ia falar de talking heads. é que existe uma complicação por trás do que eu estou com vontade de escrever, então vou enrolando, por exemplo, com essa frase de explicação, seguida de outra apontando a explicação e assim por diante. lá vamos nós, botei pra tocar o “the name of this band is talking heads”, porque ao vivo é quando essa banda realmente impressiona. sério, escutem esse e o stop making sense e vocês vão entender do que eu tô falando. se puderem assistir o filme stop making sense, melhor ainda, é uma energia tremenda. coloco aqui ou é uma sobrecarga, junto da joni mitchell? vocês conseguem fazer uma coisa depois da outra, né?
iii
é difícil não associar a música da talking heads à mente do david byrne, vocalista, compositor, artista multimídia e gênio responsável pela maior parte das letras da banda e toda a identidade visual deles - embora nem todos os membros gostem desse protagonismo dado a ele. vou inserir um pouco de contexto histórico, pra vocês (que não sabem) entenderem melhor porque talking heads é uma banda que em qualquer outro lugar, em qualquer outra época, não teria dado certo. o lugar é nova iorque e o ano é 1977. os embalos de sábado à noite acabaram, a cidade foi tomada por uma crise financeira e imobiliária sem precedentes. gente jovem, principalmente, não tinha nenhuma perspectiva de vida, mas, por consequência da violência, a cidade se tornou um lugar barato de se viver e um monte de artista se mudou pra lá pra tentar a sorte. parecia uma boa ideia, porque nessa época o movimento punk tinha estourado e todos os músicos estavam certos de que não precisavam saber tocar pra formar uma banda. era a época de ramones, patti smith, robert hell, new york dolls, blondie (ainda mais pro punk que pro pós-punk nesses dias) etc. música barulhenta, simples e desorganizada, em que o protesto se confundia com apatia social. a crítica era: não tenho nada pra fazer, vou cheirar cola. as discotecas estavam fechando e as piadas do momento eram beegees e john travolta.
iv
não foi tão do nada, porque a música já se encaminhava para esses lados. dava pra perceber no som de gente como david bowie, the slits, teenage jesus and the jerks, que o punk estava nas últimas - perdão as caneladas temporais, deve ter coisa aí que surgiu depois, mas não dá pra saber, eu não tava lá e, convenhamos, o que é o tempo, afinal? a questão é que, em 1977, entre ramones e television, no cbgb, apareceu uma banda chamada talking heads. de vestimenta - maior atrativo do movimento punk -, eles pareciam ter saído de trás dum caixa de banco. a presença de palco era ausente (antes do byrne criar seus passinhos de dança), eles mal se mexiam no palco e a única emoção vinha dos sons esquisitos que david byrne conseguia conjurar da garganta. musicalmente, eram o básico do básico, mas, e essa é a parte esquisita, dava pra dançar praquela música (graças ao baixo preciso da tina weymouth - que, no começo, estava aprendendo a tocar, se não me engano, só decidiu aprender porque a banda não tinha conseguido encontrar ninguém pra função e ela estava lá - e se tornou o traço sonoro mais distinto da banda, fora as misturas rítmicas e estilísticas que foram adotadas mais tarde no som deles). mas não era disco. também não era punk. era um híbrido esquisito, quase único naqueles dias - se tornou cada vez menos único com o passar dos anos. e as letras … as letras. ninguém queria cheirar cola naquela banda. david byrne cantava sobre como era impressionante o sentimento que ele tinha para com os amigos dele - uma coisa nova, pra ele -, sobre querer matar gente que fala demais, sobre prédios e comida, sobre a vida curiosa nas cidades de interior (essas pessoas cuidam de fazendas e jantam em família e vão pro bar!), sobre se sentir traído pelo ar depois de se queimar no sol, sobre simplesmente querer falar sem saber como. quase como se um alienígena elaborasse um relatório, explicando pra sua espécie os aspectos mais básicos da experiência humana.
v
tinha tudo pra dar errado, mas deu certo. o primeiro disco vendeu horrores. o segundo, o terceiro e o quarto foram produzidos pelo Brian Eno, e os sons e as letras só ficaram mais esquisitas com cada lançamento. estou usando termos como esquisito, alienígena, entre outros, como elogio, ok? vejam bem, a primeira vez que eu ouvi talking heads, eu não dei muita bola, porque eu só peguei o ritmo e essa de misturar traços do punk rock com música disco, afrobeat etc. não era novidade pra mim - eu não estava aqui em 1977 pra ficar impressionado e não descobri coisas em ordem cronológica. até que, em algum ponto da minha vida, eu prestei atenção nas letras - o que não é fácil com talking heads, os caras são dissonância cognitiva pura quando o assunto é a relação entre letra e arranjo musical (vide life during wartime, sobre um cara que não tem tempo pra dançar e ouvir discos por estar ocupado demais tentando sobreviver numa guerra - talvez a música mais dançante da banda). só com as letras eu fui de fato me interessar por essa banda que hoje está entre as minhas favoritas.
vi
david byrne foi, na juventude, um sujeito sem traquejo social, que não conseguia se expressar de jeito nenhum. a música, subir num palco e cantar as coisas que ele gostaria de dizer, foi o meio que ele encontrou pra se comunicar com o mundo. depois, ele aprendeu a socializar, foi se adaptando. eu sei como é isso. quando a gente parece estar cercado de pessoas que não estão na nossa sintonia, que não entendem nada do que a gente diz (e nós não parecemos entender o que elas dizem), quando os nossos interesses não batem com o de ninguém ao nosso redor, é bem normal a gente se sentir alienígena. eu descobri uma forma de arte pra tentar me expressar e me comunicar e talvez encontrar gente que entenda o que eu estou falando, que foi a escrita. não tive a sorte do byrne (nem tenho o talento), tanto que estou nessa há mais de dez anos e ainda não sei se consegui me comunicar com alguém. minha amiga, aquela, cujo pseudônimo de agora em diante é Bernadete, quando me ouve reclamar que a essa altura do campeonato era pra eu ter mais de três leitores e meio - fora os silenciosos que eu presumo existirem -, me pergunta: qual seu público?
vii
quando preenchi o formulário de inscrição para o edital que me deu o dinheiro pra publicar meu primeiro livro, lá estava a mesma pergunta: qual o público-alvo do livro? eu não sei. qualquer pessoa alfabetizada conseguiria ler, mas eu não sei que tipo de pessoa iria gostar. eu não saberia definir nem sei como as pessoas conseguem definir esse tipo de coisa. na minha cabeça, que pode não ser das melhores, a ordem natural das coisas é: publicar, então o público vem e aí a gente descobre o alvo. mas em uma década, ainda não descobri que tipo de gente gosta de ler o que eu escrevo (em livro ou aqui). enfim, dei uma resposta muito vaga pro edital e meu formulário foi bastante criticado pela fundação cultural, como se eu não entendesse como o mundo funciona ou pra que servem livros - e se esse “servem” vier num sentido utilitário, realmente, não só não entendo, como sou contra essa ideia de livros servirem pra alguma coisa, ou música ou artes visuais ou arte em geral; se você acha que arte deve servir pra alguma coisa, eu te acho um tecnocrata e posso te apontar a saída (público-alvo: gente que gosta de ser hostilizada gratuitamente).
viii
onde é que eu estava? como eu vim parar aqui? (letting the days go by / let the water hold me down …) vou citar isso aqui porque não pode ser coincidência, inclusive esse texto só saiu do rascunho hoje por causa disso. a lari, do tem mais acabou, e a ludmila primo, da meus discos meus livros, publicaram, em diferentes momentos, textos sobre loucura e normalidade - principalmente o medo de enlouquecer e como é vago o conceito de loucura, além da crueldade inerente ao termo. existe uma festa na minha cabeça e essa festa nunca acaba e recentemente ela tem tratado desse tema, levemente relacionado à minha relação com talking heads, comigo mesmo e com meus pais, que ano passado assisti se descolarem de si mesmos e do que percebemos como realidade - a realidade imediata, consciente, observada com distanciamento e desatenção - debaixo da lupa, a realidade não existe como traduzida pelos nossos cérebros, nem mesmo aqueles livres de divergências. eu não quero falar de diagnósticos, eu não quero falar de transtornos específicos, até porque quando se fala da lista meio vaga de sintomas, sempre se corre o risco de diminuir ou questionar o transtorno de alguém e essa não é a intenção, pelo contrário. a intenção é questionar o tratamento prestado às pessoas diagnosticadas. até porque, conforme compreendemos e pesquisamos melhor a natureza desses transtornos, cada vez mais pessoas são diagnosticadas, mas o estigma permanece, mais ainda na gordurosa camada conservadora da nossa terrinha. não sou psiquiatra, não sou neurologista, sou apenas um sujeito que provavelmente seria diagnosticado com um punhado de coisas se tivesse em algum momento se oferecido para diagnóstico - talvez um dia eu faça, mas hoje não tenho vontade nenhuma, não sem antes eu descobrir quem eu sou e aprender a gostar dessa pessoa e eu sinto que estou chegando lá em pelo menos um desses objetivos.
ix
eu quero questionar o termo neurodivergência não pelo lado da divergência, mas seu oposto. repito, estou longe de ser neurologista ou ter qualquer conhecimento no tema, mas eu sei uma coisa ou outra de linguagem. todo termo precisa do seu oposto, principalmente um que parece já se opor a uma definição, como é o caso de neurodivergência. mas esses neuros divergem do quê? a lari cita no texto dela a frase “loucura é um termo inespecífico”. mas e a normalidade? que caralhos é ser normal? se a loucura é inespecífica, também a normalidade é inespecífica. um conceito está atrelado ao outro, são inseparáveis. sem o normal, não existe o maluco. é isso que me faz resistir a certos exames. primeiro porque é difícil diagnosticar certas coisas em adultos que viveram vidas relativamente funcionais (sobre o termo funcional, tenho o mesmo desgosto que tenho sobre arte que precisa servir pra alguma coisa). segundo porque ninguém me explicou o conceito de normalidade e tem muita coisa normal por aí que eu rejeito.
x
a normalidade precisa ser caracterizada de alguma maneira pra que tenha significado. precisamos de um espectro da normalidade tão bem definido quanto os espectros da neurodivergência. do contrário, divergimos do quê? eu nem sei vir com exemplos. estamos mesmo falando daquela boa e velha ideia de nascer, crescer, manter um emprego útil para o capital, formar família e reproduzir para que alguém nasça, cresça e repita o processo até a extinção humana? eu sei que muita gente normal hoje seria anormal em outras formas de sociedade, outros períodos históricos etc. logo, a de se entender que se trata de um conceito maleável. no entanto, é uma norma? eu tenho, de novo, mais perguntas do que respostas. se alguém tiver um estudo científico na mão sobre o conceito de normalidade, aceito sugestões - uma história da normalidade também seria bem-vinda (cadê georges minois pra ajudar a gente nessas horas). decidi ir atrás disso agora.
xi
se algo pode ser concluído dessa bagunça que eu fiz, é que ninguém deveria se sentir louco. mais ainda se o motivo da loucura é só estranhamento social, dificuldade de aceitar certas coisas que acontecem ao nosso redor. falei disso com a minha psicóloga uma vez e ela respondeu: mas seria normal ver essas coisas e não sentir estranhamento? se as vozes na sua cabeça ou seu cachorro não estiverem pedindo que você cometa um massacre em nome do macaco sábio da montanha, relaxem. pessoalmente, enquanto não me vierem com um bom conceito de normalidade pra eu poder ruminar, vou considerar minhas esquisitices um elogio.
pra encerrar, desde o lançamento, minha editora disponibilizou uma amostra grátis de um conto do meu livro. teria sido bom divulgar isso aqui, mas nunca parei pra pensar. uma historinha simples sobre uma tragédia climática contada em reverso:
leia aqui e me diga o que achou.
gente amiga, por hoje é só. até semana que vem.
Raphael,
obrigada pela referência ao meu texto. Fico feliz de ele ter contribuído de certa maneira nas suas reflexões.
Eu gosto muito da ideia da sequência que você dá do título para o subtítulo, e deste para o texto.
Vivo na espera de encontrar minha cópia de TH 77, que acredito estar por aí me aguardando, nas melhores condições de conservação e de preço.
Mas de qualquer forma, vou chegar hoje em casa e ouvir alguma coisa da banda. Dentre os meus preferidos está o 77 e o Fear Of Music. E viajo demais na capa do o Little Creatures.
um beijo!