a fuga à natureza e suas simulações
se esse texto fosse um vídeo no youtube, ele provavelmente se chamaria "a filosofia de stardew valley" e ganharia umas boas visualizações, mas
cá estamos, mais uma semana escrevendo sobre o que me dá na telha e minha telha está cada vez mais aleatória. (hoje o texto nem é todo sobre o título, estará mais para um conjunto de ideias que me pareceram boas antes de as tentar escrever e me dar conta de que não vão muito longe.)
em coro, com sentimento, porque vocês conhecem e já esperam por esse momento com ansiedade:
COMPRE MEU LIVRO (a plateia vai à loucura)
comprou? caso já tenha comprado e recebido o objeto, me avise, fico agradecido.
1
aqui em itajaí, agora são quase duas da tarde. costumo fazer esses textos de manhã, inclusive acordei um pouco antes das seis e o dia já dava sinais do que agora demonstra: um baita céu azul, com sol forte mas vento o suficiente para disfarçar os excessivos, para meus padrões de outono, 28 graus. enfim, enquanto botava pra lavar umas roupas, alimentava minha gata e fazia meu café, pensando se fazia algo novo aqui ou resgatava um velho rascunho, percebi ter mais vontade de ler que escrever hoje. obedeci minha vontade, continuei minhas leituras atuais, ainda bastante descompromissadas: georges minois e sua história da solidão e dos solitários (agora em mais um capítulo fascinante sobre os hábitos dos primeiros cristãos de buscarem isolamento no deserto), os livros dentro do livro a boneca de kokoschka, do afonso cruz, e mais livros dentro de livros, dessa vez os do calvino, com um favorito dos acadêmicos (e portanto me aproximei dele com cautela, embora esteja gostando), se um viajante numa noite de inverno (sim, fui otário e comprei a nova edição. podem rir - plural otimista -, eu insisto.)
2
eu não tenho o hábito de falar disso porque é passado distante e normalmente eu me esqueço, mas quando eu era criança o videogame era meu passatempo de preferência, o que não deveria ser surpresa, porque provavelmente foi o passatempo de preferência de boa parte da juventude classe média (mesmo a baixa) da minha geração. eventualmente, a literatura ganhou o pódio entre as obsessões da minha vida e assim o é há uns bons anos. abandonei os jogos, quase completamente - quase. uma vez, a cada ainda misterioso cruzamento planetário, me bate a vontade de sacrificar energias jogando alguma coisa em vez de as sacrificar lendo ou escrevendo. dois jogos específicos apenas, além do xadrez que é coisa nova pra mim (então agora são três?): civilization vi (antes jogava o v, nos tempos descritos nas primeiras linhas desse parágrafo) e stardew valley, o último a razão de eu ter começado essa postagem.
3
nas minhas sessões de psicanálise, alugo os ouvidos da psicóloga reclamando da ausência de sentido do meu trabalho. trabalho na indústria alimentícia, mais especificamente no setor de exportação. parece contraditório, não deveria parecer desnecessário, se usarmos aqui da linguagem corporativa e nos enganarmos com o ideal: estamos alimentando o mundo. não vou citar a corporação em particular, por motivos jurídicos incertos, quem sabe no futuro, quando eu não mais esteja lá. por agora, vou apenas dizer que é um desperdício enorme. de recursos, de tempo, de existência. tudo pode se resumir à tal alienação definida pelo velho marx (o quarto dos irmãos: karl, seguido por harpo, groucho e me esqueci o nome do outro - não é o engels, me fugiu mesmo o nome do sujeito), é bem verdade. acostumada, a psicóloga responde que já me vê dando passos para sair dessa, que estou trilhando um caminho bem seguro rumo a uma carreira envolvendo educação e as artes, mas, na opinião correta dela, me faltaria contato com a natureza. diz ela que, se eu lesse o livro a terra dá, a terra quer, minha crise existencial ficaria ainda maior, pois nele se me apresentariam modos de vida ainda mais diversos, que eu nem poderia vislumbrar. e eu posso imaginar, não tendo lido o livro, mas tendo lido gente escrever sobre ele.
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pra quem não sabe, stardew valley começa com um avatar da escolha do jogador trabalhando em uma corporação, desgostoso com a vida. então ele abre a gaveta da sua mesa e reencontra uma carta entregue ao personagem por seu avô, em leito de morte. na carta, o personagem descobre que herdou uma fazenda, numa cidadezinha do interior. logo, ele decide largar tudo e ir pra natureza, viver daquilo que ele mesmo planta. claro, depois o jogo descarrilha para exploração de cavernas e combates com monstros, a ponto da fazenda virar um segundo plano automatizado. hoje de manhã, enquanto eu me distraía do meu livro, assistindo minha gata tomar sol e lamber as próprias costas, me peguei pensando no quanto é esquisito que esse jogo exista.
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o desejo de fugir para o mato, tanto em gente que viu sua vida ser tomada por uma corporação quanto por gente que não chegou nesse ponto mas está inserida num contexto urbano cercado do tal capitalismo apocalíptico, é uma coisa presente. em uns mais do que em outros, em uns com mais frequência que em outros, mas eu custo a crer que não passe na cabeça de uma boa parcela das pessoas nessa realidade. a existência e o sucesso desse jogo são prova disso. porque é isso que o jogo oferece, uma versão simulada e livre de esforço, dessa fuga - sendo o videogame em si, uma espécie de fuga, um jogo sobre ter uma fazenda no interior é uma fuga ao quadrado. como é de se esperar, nessa nossa existência repleta de dissonâncias cognitivas, alguém que se vê imerso nesse jogo faz tudo menos fugir para o mato, faz tudo menos interagir com a natureza. e o objetivo do jogo, conforme se avança, logo parece ser fugir da natureza para se ter contato com aventuras sobrenaturais - portanto, sair de uma simulação de natureza para encontrar um jogo propriamente dito, de fantasias de poder e acúmulo de recursos. quando, nos momentos da vida em que me entreguei a esse jogo, percebi esse segundo objetivo, a coisa perdeu a graça. embora, com menos frequência, eu ainda me pegue “satisfeito” ao montar uma fazenda com barris de produção de vinho e cerveja etc.
6
os labirintos da vida contemporânea são uma dor de cabeça.
7
vou falar de calvino, então. sempre que um grupo de acadêmicos das letras vem com aquele papinho de literariedade e alta literatura, se acende um alerta no meu estômago e procuro nos bolsos pela carteira que não tenho. e esse papinho muitas vezes surge quando o assunto é se um viajante…, do simpático italo calvino (pelo menos pra mim ele parece ter sido um senhor muito simpático, com quem seria possível tomar um café livre de grandes decepções - mas apenas um café, gente que escreve raramente é boa companhia por mais que algumas horas, com todo o respeito e sem ofensa - pelo menos, eu não me senti ofendido pelos meus próprios comentários - inclusive calvino me parece um senhor simpático que ficaria um tanto entediado por esses papinhos de alta literatura e literariedade). tendo lido apenas 60 e poucas páginas do famoso romance de italo calvino, ouso dizer que, se fosse escrito por qualquer outra pessoa, seria descrito não como um romance repleto de engenhosidade, inteligência e humor […] um elogio à literatura e à arte do romance (vide sua contracapa), mas como um romance autoindulgente no qual o autor insere os vícios metaliterários do pós-modernismo dentro do seu próprio cu. por outro lado, eu gosto de romances autoindulgentes e não ligo que enfiem a metaliteratura dentro do cu da própria metaliteratura.
8
apesar de tudo o que eu disse até agora que possa servir de evidência para o contrário, estou gostando bastante da leitura. tem um senso de humor que me agrada e um jogo de sentidos que, por incrível que pareça, não larga mão de uma narrativa. o melhor e mais importante, eu não faço ideia de pra onde esse livro ainda pretende me levar e, no primeiro terço, ele já me levou para uns lugares inesperados, de uma brincadeira com o romance policial em uma estação ferroviária, para uma história complicada envolvendo jovens do interior da polônia (ou hungria ou romênia ou ciméria), uma cozinha e intrigas incompletas entre famílias rivais, para um diário/romance de um autor cimério, mais introspectivo (parei aqui, não sei muito sobre essa história ainda), sem falar que essas são as histórias dentro da história desse leitor que só queria ler o novo livro do italo calvino, se um viajante numa noite de inverno.
9
estamos quase no final e agora você deve estar se perguntando se vamos mesmo ter uma edição que não pretende citar nenhum disco. não será dessa vez. eu até achei que ia acontecer, mas é difícil não falar de fugas pra natureza sem falar de mount eerie, um dos projetos de phil elverum, essa banda de um sujeito só (e uns convidados), que sempre lança esquisitices, uma diferente da outra. a indicação é o álbum wind’s poem. uma bela duma salada de gêneros musicais que só podem ser resumidos em: sons da cabeça de elverum. são poemas embalados por sons ambiente que não se parecem com nenhum gênero musical em particular, sobre o vento que destrói mundos, sobre as montanhas, e a indiferença dos rios e pedras e árvores milenares perante a curta existência humana. tem horas que parece black metal, tem horas que parece ambiente, tem horas que parece a trilha sonora de twin peaks (às vezes, é a própria, como na faixa between two mysteries). é necessário escutar pra que não me permitam mentir sozinho.
é o que temos pra hoje, gente amiga. espero que a newsletter continue satisfatória, teve livro, teve música, teve divagações sobre o ponto de ruptura para o qual a estupidez humana levou a nós todos, teve minha descrição do tempo surrupiada de david lynch e mais uma referência indireta ao meu maluco favorito (um dos), o que cada vez mais nos aproxima a edição dedicada a ele. não esqueçam de comprar meu livro. e se já compraram, o indiquem aos seus chegados (ou inimigos, caso não tenham gostado). semana que vem tem mais, exceto que eu decida fazer a retrospectiva no meio da semana, que eu mencionei da última vez. ninguém protestou nem me fez mudar de ideia, eu só não tive tempo de selecionar um texto velho.
eu tenho muuuitas horas jogando stardew valley e sempre fiquei refletindo o que me fez ficar tão viciada nesse jogo, parece que a minha ansiedade some no meu mundinho em pixel art com musiquinhas fofas de conforto enquanto o mundo real desmorona hahahahahha acho que a indústria dos jogos só cresce e lucra ( bem mais que a do cinema, inclusive) por conta também desse escapismo imersivo que os jogos promovem com doses cavalares de dopamina.