a falta de sentido
uma divagação baseada na chamada de uma notícia que eu não li por inteiro (sobre obsolescência humana, arte e premonições / bônus: um poema de Sam Pink e um disco da Acid Mothers Temple)
eu recebo e-mails daquela wired, a revista online sobre tecnologia, meio sensacionalista nas chamadas. todo dia alguma coisa vai ser o fim da humanidade, de acordo com essa publicação.
já li de fungos que causam infecções letais em seus hospedeiros, mas que costumavam se atrelar apenas a répteis, por causa do sangue frio. aparentemente o fungo morria em temperaturas mais elevadas (30 e poucos graus celsius).
até que identificaram casos dessa infecção em seres humanos, sugerindo que o fungo teria se adaptado a temperaturas mais altas, e cientistas se apavoraram (com razão, não estou sendo irônico), porque nós não sabemos porra nenhuma sobre fungos.
hoje vi uma chamada sobre microplásticos em algas do ártico, fundamentais para a cadeia alimentar num geral.
é minha publicação favorita quando quero sentir pânico ou me dessensibilizar perante a inevitabilidade da extinção humana.
dito isso, a pauta apocalipse tem perdido a força desde o lançamento do chatgpt. agora o balanceamento tá mais ou menos assim: i.a. vai acabar com tudo; i.a. na verdade é algo bom; quem diria que o Elon Musk é tão burro … (eu diria, mas ninguém me perguntou); e então algo sobre uma nova pesquisa que revelaria uma nova possível causa para o fim da humanidade ou alguma nota sobre o avanço das causas já conhecidas (essa dos microplásticos caberia aqui).
mas a de hoje não me apavorou, ela só me deixou confuso. o título da matéria é “quem você vai ser depois de o chatgpt ocupar sua função?” a chamada contextualiza, falando de pessoas que estão em crise por terem seu senso de valor atrelado a um trabalho supostamente prestes a ser automatizado.
talvez eu tenha entendido mal alguma coisa ou a matéria completa traga alguma explicação.
é verdade que eu não me preocupo com i.a. nem de perto tanto quanto deveria. talvez porque a função mais fácil de substituir seja a de ceo e eles sabem disso.
mas mesmo que fosse garantia que eu (o eu que é analista de exportação, não estou falando do eu que escreve aqui) viesse a ser substituído pelo chatgpt nos próximos cinco anos. não é a falta de senso pessoal de valor que me preocupa, é a falta de um salário.
e não é essa a única preocupação? que a tecnologia tenha chegado nos maquinários capazes de substituir a mão de obra humana, tanto a física quanto a intelectual - com dificuldades técnicas em ambas as áreas -, muito antes de haver qualquer esforço social rumo à renda básica universal e o direito à moradia?
meu trabalho não me fornece qualquer senso de valor, é o dinheiro que eu recebo todo o mês que me mantém vivo o suficiente para conceber uma noção do que é esse tal valor.
me preocupa um pouco mais que a sociedade tenha se tornado tão mais consumidora em vez de criadora, que muitos de nós de fato se impressionem com as produções artísticas da i.a. particularmente, acho chatas e previsíveis.
a maior vantagem técnica da i.a. é, ao mesmo tempo, a maior desvantagem: a i.a, não vem embutida de nenhum preconceito embasado pela experiência e/ou pela teoria. ou seja, ela pode vir com uma receita que combine ingredientes inesperados, que a cozinha tradicional nunca pensaria em combinar por não fazer sentido.
exemplo disso eu vi num vídeo de coquetelaria. a receita inventada pela i.a. pedia uma dose cheia de angostura numa variação sobre o old fashioned, a ponto do humano que estava para fazer o drinque ter vontade de corrigir, mas ele não corrigiu e por acaso deu certo. (diz minha memória que eu vi esse vídeo.)
para a i.a., não existe essa de fazer ou não sentido, ela não sabe o que é comer ou beber ou ler ou contemplar, ela só coleta dados e os regurgita em uma determinada ordem que pareça satisfazer ao comando do usuário.
isso serve para nos inspirar em momentos de bloqueio severo, mas, como criação, é limitado. para cada poema surpreendente, livre de preconceitos, ela vai produzir vinte poemas repetitivos, derivativos e desalmados. justamente porque ela não tem experiência, ela não sabe o que é nem teria meios de ler um poema. não compreende qual sensação um texto nesse formato deveria causar num ser humano, porque o conceito de sensação é, também, estrangeiro, nada além de um punhado de dados a serem organizados se necessário for.
a i.a. pode coletar dados o suficiente para saber reproduzir todo e qualquer estilo ou forma poética já imaginada por qualquer escola literária em qualquer país, mas não sabe a razão de ser de nada disso.
e a graça na arte está no ato da criação. a apreciação é parte construtiva do processo e é essencial, creio eu, para a vida, mas parte dessa apreciação vem do fato de nós sabermos que foi um de nós que fez isso. que foi um ato proposital, mesmo quando acidental. e o ato está interligado à história (coletiva e individual) que está interligada à identidade/cultura (coletiva e individual). i.a. não é identidade nem tem história e cria cultura apenas por associação à humanidade.
caso esse senso de propósito se perca, por estarmos mais interessados no consumo automático, aí sim, a i.a. tem potencial de nos substituir em todos os aspectos. e também perdemos o seja lá o que for que define e distingue a humanidade.
por isso eu não me preocupo de ter minha função profissional ocupada, uma vez que se dê um jeito nessa questão da renda básica etc. (não acho que esteja na pauta de qualquer um desses tecnocratas esse detalhe e é isso o que me tira o sono.) o valor do meu trabalho não me preocupa nem enquanto artista desvalorizado por definição.
meu senso de valor nunca esteve nem estará atrelado à minha função profissional - mal e mal está atrelado ao dinheiro, senão por questões de fome. meu senso de valor está atrelado a coisas um tanto mais complicadas do que trabalho.
eu acho que nós, coletivamente, somos mais que isso, não importa o quanto queiram nos convencer do contrário.
não acredite neles.
(texto escrito pelo chatgpt.)
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Curiosamente, meu livro de contos tem um sobre inteligência artificial e uma existência simulada (não a nossa, mas nós mesmos criarmos uma simulação e enfiarmos nela as pessoas esquisitas - tipo você e eu). Ninguém vai acreditar que foi antes do estouro do chatgpt. Não precisa, eu sei da verdade e vou me declarar profeta.
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Tradução
Hoje eu espero que um ônibus me mate acidentalmente, de Sam Pink
Hoje eu espero que um ônibus me mate acidentalmente assim as pessoas vão rever tudo que eu fiz na vida e pensar no quão especial ela foi, porque um ônibus me matou acidentalmente. O motorista não precisaria se sentir mal, porque teria sido um acidente e, se por algum motivo a colisão não me matasse, quando o motorista saísse do ônibus para checar meu estado, eu diria, “Você poderia por favor passar com as rodas por cima da minha cabeça e acabar comigo? Está doendo e eu quero virar um herói.” As pessoas no entorno veriam a grande roda do ônibus esmagar meu crânio no concreto, minha boca gritante a última coisa a partir.
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Saiu disco novo da Acid Mothers Temple, então fiquem aí com um dos antigos:
li "tecnocratas" com a voz da Mª da Conceição. compartilho da opinião geral do texto e outras cositas más.